A bem dizer, se há dias para quase tudo, acho muito bem que haja um que homenageie esses cromos da nossa caderneta.
Hoje tinha um presente quando cheguei a casa, imagine-se. Eu, que nem sabia que era Dia dos Irmãos. Eu, que já nem sei o que é essa coisa de receber prendas.
A minha irmã deixou-me aquela que é a maior obra literária para quem foi criança nos anos 80, "A caderneta de Cromos", do Nuno Markl.
Fiquei emocionada, pá!
Isto de ser irmão é uma coisa que não se escolhe. Eu pelo menos não escolhi, porque esse título foi-me atribuído com apenas 15 meses, por isso, para todos os efeitos práticos desta vida, já nasci irmã, uma vez que não me lembro de nada antes disso.
Aliás, posso afirmar com toda a certeza que é ela a minha memória mais antiga, isso deve ser o suficiente para lhe atribuir um lugar de destaque no meu álbum de recordações.
O meu irmão é aquele personagem que já não partilhou nada comigo, a não ser o quarto nos meus últimos meses de vida em casa dos meus pais. Quando me casei ele tinha 3 anos. Será, de certeza, um dos cromos dourados na caderneta dos meus filhos e isso já me deixa feliz.
Foi uma grande aventura viver a gravidez da minha mãe, na altura com 39 anos. Depois saber que era um rapaz...nós que estávamos habituadas à maioria lá em casa, embora o meu pai sempre tivesse sido um homem muito sábio entre as suas mulheres. E convém realçar que isto não é para todos. Manteve a sua sanidade mental até hoje o que é louvável.
Ora pois que se partilha cuspo, arranhões, medos, dúvidas existenciais, defeitos, roupa, música, brinquedos e tudo e tudo.
Lembro-me daquele dia na Serra de Sintra, em que chovia imenso e eu levei uma lambada porque estava armada aos cucos e não queria que segurasses o chapéu de chuva comigo. É assim, os irmãos mais velhos pensam que sabem melhor, que têm mais força, que os direitos lhes assistem por ordem de chegada a este mundo, mas depois vai-se aprendendo, de galheta em galheta, que também não foram quase nenhumas, que nós até éramos umas garotas atinadas.
Lembro-me de quando partimos o estrado da tua cama, num acesso de fúria em que nos esgatanhámos porque eu não te queria dar a abébia de experimentares o meu primeiro relógio, bracelete azul, com o Snoopy no mostrador, lembras-te?
Para castigo tiveste de dormir no estrado partido durante meses, com um barrotezito a segurar a parte danificada.
E aquela noite memorável da nossa puberdade, em que, sozinhas em casa, nos inúmeros banhos que partilhámos, nos sentámos à conversa, em pelota, eu na sanita (normalíssimo) e tu em cima do lavatório e aquela coisa despencou, tu vieste parar ao chão e incrédulas vimos a casa começar a inundar.
Vá lá que o meu cérebro em estado de choque ainda conseguiu raciocinar que a torneira de segurança lá na rua se podia desligar e parar o rio que saía do lavatório partido.
Isto imediatamente antes de pensar que os pais nos iam matar quando chegassem a casa e vissem aquele espectáculo.
E quando pisámos uvas num alguidar? E quando jogávamos badminton naquela rede que o pai improvisou lá no pátio? E o medo que eu tinha de cães, mas que continha porque sabia que tinhas pavor...
E quando brincávamos com as cenouras e outras amostras de legumes que a senhora nos dava quando íamos com a mãe à praça?
E as idas à Maconde para comprar roupa nova?
E as férias em Alvisquer?
E as manhãs em que a primeira a acordar tinha o dever fraternal de acordar a outra quando começavam os desenhos?
E as papas de bolacha maria e leite cheio de chocolate?
E podia estar aqui até ser velhinha, que provavelmente é o que vai acontecer, daqui a uns anos quando começarmos a ficar repetitivas e só nos lembrarmos do que se passou há 30 ou 40 anos.
Temos muitas coisas boas para recordar.
Quase me atreveria a afirmar que os melhores anos da nossa vida são estes, dos 6 aos 12.
E é esta a magia de se ser irmão. As nossas memórias, os cheiros, as paredes, os sabores, estão guardados noutra cabeça e noutro coração. De uma maneira que nunca poderíamos partilhar com um amigo, por muito íntimo que este fosse.
Não foi tudo maravilhoso. Não. But I wouldn't want it any other way...