Saio do trabalho. Sinto o vento frio a tocar-me nas arestas do rosto. O passo é sempre acelerado. Desce escadas, sobe escadas. Passo acelerado de novo. Tantas caras que se repetem naquela passadeira, dia após dia. O mesmo velhote de olhar vazio, que espreita pelo vidro da porta do prédio mas que nunca se atreve a sair. O sinal está verde. Deslizo até ao comboio. Quando finalmente respiro fundo e me sento no lugar do costume, faço de mãe. Ligo às crianças, para saber se já fizeram os deveres, se o dia correu bem. Espero que o "estou a caminho" os impeça de fazer disparates e de comerem a reserva de bolachas que temos na despensa.
Depois volto a descontrair, coloco os meus phones e naquele instante fecho os olhos, deixo-me levar pelo ritmo da música e pelo sol que, finalmente, me acompanha no atravessar da ponte para a outra margem.
Quando o sono já está quase a levar-me a melhor, forço-me a abrir os olhos. Hora de acelerar outra vez. Ligo novamente o modo mãe, desta feita para comprar o que faz falta. Pensar rapidamente no que fazer para o jantar, pão, os cereais já acabaram. Turbilhão de gente. Fila para pagar. Subir escadas a correr. O metro não espera por ninguém.
O sol ainda não se escondeu quando percorro a última parte do percurso. O frio gela-me os dedos, tanto, que nem sinto o peso do saco a vincar-me os dedos. Sigo como se não houvesse mais ninguém à minha volta e trauteio, timidamente, as músicas da banda sonora da minha vida, já não vou acelerada, até me esqueci que já tenho filhos e que o fogão está à minha espera, e que há roupa para dobrar e outra tanta para arrumar.
Sorrio, e o frio já não me gela as bochechas. Os liláses e os rosas de fim de tarde acompanham-me até à porta. Quase que danço os passos ao som da música, até casa.
A porta abre-se. O fogão, a roupa, os filhos, as compras. Respiro fundo, estendo 10 saquetas de cromos a um miúdo para lá de contente, pouso a mala, beijo as bochechas da minha miúda, sempre pronta para meiguices.
- tenho fome, mãe. Posso comer bolachas?
Sento-me ali a colar cromos e a virar páginas e a debitar nomes de animais. O "meu" Sam Cooke já tão longe. Cumpriu a sua função de me lembrar que é bom ser eu, mesmo nos dias em que ser eu me cansa.